quinta-feira, 28 de maio de 2009

Afectos, laços humanos, expectativas, perfis de pensamento
tudo passa pelo crivo intransigente da noite, até que se atinja ____________
Se houver algo que resista à devastação interrogativa ______
A base da espiral sobre que giram os destinos dispersos da minha vida,
todas essas coisas que dizem eu a falar de mim, como se o seu
corpo não
recebesse, todos os dias, ordem de morrer;

mas, todos os dias, uma projeção de sucedidos,
rios sobre lagos,
lagos sobre fontes,
fontes sobre cascatas,
cascatas sobre lágrimas,

tenta abrir caminho por terrenos movediços vindos do lugar onde fui criada antes de ser concebida; e eu só,

a sós comigo (um sou engolido e sobressaindo à tona), tentando unificar as sombras inimigas,
peço apoio ao ambo, ao texto, à floresta e aos animais

porque demasiado implacáveis se podem mostrar as sombras da vida

peço apoio aos que não têm onde se apoiar,
àqueles que conhecem com mais qualidade a força da sombra e da exclusão

E o recado que recebo é sempre idêntico (até que o meu sou veja que assim é)

O sem-apoio apóia-se na falta de apoio
que leio (ou a ler)

O poema é sem-apoio.


Llansol, Onde Vais, Drama-Poesia?.

segunda-feira, 25 de maio de 2009


Se vós soubésseis o que é a ilha de Ana de Peñalosa, que é, por excelência, a imagem com que se resiste, não por haver rochedos defensivos, para o que serviria uma fortaleza, mas erva, mais erva, e a linha onde toca a perdida nota de música.

Há dias, como o de hoje, em que tudo me parece envolvido por uma tristeza de montanha não neglijável. Observo-o com candura e, se a descrevo mal (mal a descrevo), é para penetrar nela com a consciência da sua realidade. Sera´a ausência dos seres humanos que cria a forte tristeza da montanha? Ou será, pelo contrário, a presença dos seres que inflama de vazio este lugar?

Vejo a chama que brilha,

mas não vejo a vela que arde.



Llansol, Na Casa de Julho e Agosto. p. 112




terça-feira, 19 de maio de 2009


é difícil manter vivas flores e plantas num apartamento térreo, de fundos e com vista para o concreto. daí o orgulho.
eu escrevi um livro que não houve. agora que a não existência dele é mais verdadeira que a sua possibilidade de vir a ser, reconheço o quanto a poesia é difícil para mim por conta da relação ambígua que tenho com guardar segredos. resolvi dizer isto porque quis postar o último poema do meu livro, e acho, obviamente, que esse texto diz porque quem não publicou é (ou foi?) a Tatiana Pequeno.


Engano


dormias
e nos intervalos
mal sabias o meu nome.
para uma composição de gelo
uma seiva que desliza é um
estado de lava em alto grau
porque também assume
o seu retorno
insiste na oposição no atrito
de ar e roldana na fala
para o exército de nomes e
não o segredo de calar o que
é inválido
embora fria seja a desistência
no entorno do que não ama.

há um gosto de meses no que
não almoço e os mesmos líquidos
escorrendo sobre o balcão da
sesta
e somente este sono de cansar
minha voz não apaziguar e não
nutrir o que aqui falta acreditar
em eternidade.

(era fácil, sabes, se a culpa ou o vulcão
da palavra vingasse o nosso nascimento
e a morte dos amigos não fosse a atividade
diária do que não nos é diferente.)

domingo, 17 de maio de 2009

Oiço falar

Oiço falar da minha vocação
mendicante, e sorrio. Porque não sei
se tal vocação não é apenas
uma escolha entre riquezas, como Keats
diz ser a poesia.
Desci à rua pensando nisto,
atravessei o jardim, um cão
saltava à minha frente,
louco com as folhas do outono
que principiara, e doiravam
o chão. A música,
digamos assim, a que toda a alma aspira,
quando a alma
aspira a ter do mundo o melhor dele,
corria à minha frente, subia
por certo aos ouvidos de deus
com a ajuda de um cão,
que nem sequer me pertencia.

Eugénio de Andrade. O Sal da Língua (1995).

Esqueletos

lago

a nutrição dos peixes explode
descasca ares
adensa o corpo onda os mares
a nutrição dos peixes, molde
duto
os dados sobre os diamantes
a partir de pedaços de vidro
como se nada nada um absoluto
vertical e exposto nada
esclarecesse ao mundo
as informações nutricionais
sobre os peixes galápogos:
efeitos de um hidrogênio
excessivo.

















súmula

focos de neve sobre
a relva favelada do macarrão detrito
com tomates de espuma,
teu corpo, pai
exumado na data dos meus anos
na ocasião do contorno
círculo nocivo
globo notívago
pelo qual adentro
virgem dos peixes
como pupilas que dançam
na água doce da piscina
falseada. cúpula em transe
véspera do abate do sabor
tirano
violento como deus
aos treze anos.














melanografia

era que me dessem espelho,
fulgor da água
cisterna do corpo
ordem descomposta, bruto rompimento
era que eu precisava de que fosse
rápido
como fome
como roldana em atrito da corda com o líquido
e que o movimento estivesse
sólido
acometido pela vigência do nublado
espaço fonte fome eu repito fome
órgão genital entre sebes, frentes de trabalho na
gravura de pele em acrílico profundo.
era que me fosse desenho.
















Transmissão


Álibi que encosta a crosta da língua
no cerne do pavio,
na gordura espessa da várzea,
no efeito cáustico do globo em brasa
brisa noturna de vespertinas covas.

Olhei vestida de soldado
com quepes de molho,
pura sanitária
e com bastões e estandartes de ouro
reconheci no aspecto homogêneo da arnica
a benfeitoria dos apaches, meus irmãos.

Olhei vestida de álibi a crosta do pavio,
como se houvera sido pedra
não fosse o papel incendiário a que sempre sucumbi
o selo legítimo dos lipomas.


30/11/2006










Inscrição

A ponte de néon sobre o rio
alarga a altura das margens
e sobeja a escritura de um poema
ainda límpido no concreto
de barro
que une a cidade
só bolos (e) rios
avançam à direita do passante
embevecido no olhar montanhoso de quem
investe sílaba a sílaba no rim de gás calcário
de maneira que
os pregos os depois e os inquéritos
encontram paz num depósito gorduroso
doutro corpo
igualmente aterrorizado
então basta.















Carta a Alberto, ainda em 97


Não sei mais o que me dizias acerca
da memória das índias e se falavas
Real
do disco repetitivo do nick cave a tocar
a música absurda sobre a existência de anjos
porque eu também ando a gozar dos fármacos
Alberto
e a mim não parece procedente que viva
tão-só de poesia e de diários inscritos sob
o horror que eufemizavas ao dizer apenas
medo.
É claro que acredito nestes anjos ou em
some kind of path que muito pacientemente
elegemos por atalho e por devoção. Alberto
era necessário que viesses por aqui e me ajudasses
a encontrar outros vocativos para além da úmbria
condição adolescente que – disseste –
consistia em elaborar a voz a ponto
de ela não mais enganar a nada e nem a ninguém
porque, eu sei,( deixaste-me claro desde o início)
que estar vivo no epicentro das flores era também
recusar
prestígio emprego bolsas convites
já que falar no teu nome era incerto
sinônimo de
confessar-me também amedrontado
ambíguo belga & português
mas sobretudo doente. Acho sinceramente
que se pudesses me segredar mais da Experiência do
Enforcado ou da tragédia que acometeu Zohía,
poderíamos aproximar os nossos ascendentes
e caminhar em silêncio pela praia, em sines,
ou aqui mesmo no flamengo. Não consegui
gravar-te a fita prometida, e por isto fica o pedido de desculpas,
com a sugestão de que ouças os afghan whigs porque neles
vejo algo television
que seja um pouco do richard hell no greg dulli. por fim
mando não só os meus, mas também abraços e beijos do gustavo
que, sabes, é comigo um outro a falar de ti por estas bandas,
em que o festejo e as cores primárias sangram
as asas destes pequenos demiurgos sem nenhum
glamour ou descendência européia. O poema
que te fiz pus no lixo
junto ao mar ao mito e à minha morte
jacente noutra centrifugação da noite
para acordar fruta horto sorte e
só enfim encenar o último gesto (no coliseu de lisboa)
acompanhado
da horda de mortos que te esperavam
com a garantia & o cumprimento
então de uma overdose de
Beleza.


Barra Mansa, 17 de abril de 2006
(véspera e profecia)












Moonshiner

Dois dos meus filhos estão
suspensos através de
um buquê de escorpiões -
espera na intenção de
drenar a lactose
junto do córtex e da nata
alegórica dos seios.
Aos domingos
dois dos meus filhos
fibrilam um acometimento,
na falta dos desastres.
A cozinha
os pêlos
a casa
toda é tomada por esse ar
de excêntricos odores:
o tom é ameixa,
o cheiro é clinica.



















Dezembro

Devocional a lavagem dos pés
enquanto os ônibus desmontam a chuva
e os afogamentos na praça saens peña
desde sexta-feira, dia em que me deram
de beber o ozônio que caía do teu cabelo
e escorria uma língua transparente até
a saída do metrô inerte da cidade da água
como acidente.
Sequer alguém para ver ou ouvir a química
dos transportes em marcha lenta para
movimento de subúrbio acabando & a minha voz
perder. Molhar desde muito para mais longe contra
a devoção pelo espaço ser um cotovelo se
armando
de as senhoras produzirem náusea nos rapazes
apressados no lastro de perfume curtido.
Frêmito de temporal com vista para a esquerda
na pressa das professoras e motoristas em ordenha,
cinza de adubo para asfalto e todos os 415 fechados
em sua órbita para nunca mais descer a conde de bonfim
e caminhar com livros inúteis, roupa branca suja de lama
ou panetones amassados nas sacolas de plástico que a
intensidade da natureza resolveu dinamitar.













Incisão e álcool para Chan Marshall ou tradução livre para moon pix


Quando as crianças não estavam brincando
e não havia uma luz vermelha na sala de ser
o que imperavam eram os escrúpulos sobre
a mentira. Mas agora eu achei o que as cegava
para acreditar no significado metal
de que o coração é uma cápsula depositária
de bandeiras, acenos e estrelas distantes da
memória. Sim, trata-se de um zoológico triste,
de um aparelho preciso a medir gestos cirúrgicos e
mostras contaminadas de vinho barato e sangue
seco sob as cordas do violão
presente
datado de janeiro de 1988 com a finalidade
paterna e alcoólica de descobrir o significado da incidência
infantil de todos os pesadelos.






















Enorme o projétil que determinou
a permanência na água e o
resguardo no sal para as
olheiras do afogado. Houve luminosidade
houve fadiga e
debaixo do mar eu via o lugar vazio
e irreparável da terra, como quando
nasceu um planeta periférico de ondinas
enxertadas para a inútil crueldade da análise
desde muito, sobre décadas
no rizoma das raízes aquáticas
que transformaram em pedra
o meu leite de veneno.




















De nunca garantir a casa
foi o elo para a assinatura
inexistente nos livros de Ofício.
Também sacolas de supermercado
rasgando na praça em meio a
todos os dias de domingo
com a sorte dos avisos, ultimatos
uma seqüência de respostas erradas
para bemóis muito antigos.
Ou mesmo que o açude em mim vergasse
não cingiria o lenço do noivado não
dançaria no mar o pano dos berços:
chegaria de longe um corpo a fantasma,
bólide entre pirata e o desejado na voz castrada
para garantir em mim pérolas da terra.
Que fosse música de subúrbio.

Rio para professoras II

Para a Fernanda Pequeno


E levanto a voz em tom ameaçador
de desorganizar vidas supondo que
o calor atenue o ímpeto das desmedidas
para um sinal sonoro de escola superar
a fala
enquanto saio correndo pelo entorno da baía
a vergar o corpo de cal, suor e chuva
porque também chove e porque também os olhos
são graves de tarefas, plenos de ataques a crediários,
encostas, ementas, trens e teorias.
No largo da carioca o almoço é um enxame sem favos;
a rapidez é desonesta feito a bondade infinita das dicas para
cursos preparatórios de língua portuguesa e mandarim. Não falar
de si e da incompreensão do suicídio de ian curtis ou dever chorar
o intervalo da tarde somente minutos antes da plenitude dos remédios
atravessando em andor para tantas eras de raridade amparo
provimento, que dormir em vidros de coletivo parece conforto mítico.
E se não bastasse a fé de percorrer três cidades durante um dia, eu
diria que o afago inexiste nas trincheiras e mais: há todos os outros dias
que não segunda-feira
de pé quatro e vinte e cinco da manhã
em cozinha a demandar reparos de eletricidade
e encanamento inaugurando a língua com fervor
e doçura de cafeína preparada então para
desvirginar o primeiro metrô do dia
num vagão só para mulheres ferozes
de cansaço já nas primeiras horas matutinas.
E a pavuna me receberá resplandecente, no cheiro
de fritura e creolina em desajuste
com o volume e o fulgor das frutas
irrompendo o mundo para apaziguar
as dores órfãs e domésticas dos meus pés
irreparáveis e contínuos para asfalto e infantaria.
Voltar significava acúmulo, pétala soltando
a condição de rio em nome de uma voz alterada
grave e enorme como a poeira de quem aguarda
transporte alternativo na linha do trem nos centros
das cidades da baixada. E se volto à condição de
aprender, é grande o impedimento de falar para um
homem e para a disputa cruel das crianças: posso dar
o peito do poema a elas e esperar que sejam
nutridas pela falsidade insustentável de outros
desconfortos, mas que tragam a mim os alfinetes
das insígnias que forjarão a narrativa de suas
dramáticas tragédias encenadas no dispositivo
insólito do que é real. Era um sonho saber
o que fazer disso,
saber como cruzar histórias díspares e iguais
sem corromper o medo ou sobrepujar a ética
mas parece que ultimamente pouco
importa
o quanto sabotamos as próprias guerras
e o que fazemos solitários depois da
trigésima gestação de risco. porque os
pais chegam abruptos e também eu
assino termos de condenação e julgamento
prometendo, no que resta para o mundo,
não mais interceder no que é humano e
esquecer por definitivo os desdobramentos
dos rios das palavras e do amor sobre a terra.

sábado, 16 de maio de 2009

desenha com a ponta dos teus dedos
as fronteiras exactas do meu rosto
as rugas os sinais a cicatriz que ficou da infância
o lento sulco das lâminas onde no peito
se enterra o mistério do amor

e diz-me
o que de mim amaste noutros corpos
noutras camas noutra pele

prometo que não choro mas repete
as palavras um dia minhas que sem querer
misturaste nas tuas e levaste
com as chaves de casa e os documentos do carro
- e largaste sobre a mesa com o copo de gin a meio
na primeira madrugada em que me esqueceste

Alice Vieira

acidente

como abrir uma fenda radiante
na terra
e vazar sem água o acúmulo
dá em filetes o ladrilho
com sorte e banho e pêlos
ao chão.
como escolher entre os nomes
o que reedita a ova de amar
sem galhos e horas perdidas;
comum para um centro fácil
e imenso para chegar aqui
sem a ogiva do meu filho.