segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Publico abaixo a generosa resenha que a professora e pesquisadora, além de silenciosa amiga, Evelyn Blaut fez do meu primeiro livro de poemas:


Recensão a réplica das urtigas, de Tatiana Pequeno. Oficina Raquel, 2009.

réplica das urtigas chama a atenção desde o título, pois que réplica tem pelo menos três sentidos, é resposta incisiva àquilo que é dito ou escrito, contestação, replicação, objeção; cópia ou imitação de uma obra de arte; ritornelo – sinal que indica repetição de determinado trecho de uma peça, em cantos ou versos, como nos madrigais italianos dos séculos XIV e XV, repetição de um verso no fim ou no início (como antecanto) de diversas estrofes ou ainda no corpo da mesma estrofe, criando uma espécie de rima ou base rítmica para o poema (Houaiss). Urtiga pertence à família das urticáceas, ervas que causam irritação à pele. Isto quer dizer, quase segundo a lição de Gilles Deleuze, replicar aquilo que parece menor, mas que é ainda pungente, comovente, lancinante. Sei, no entanto, das Iluminações já lidas e relidas por Tatiana e, por isso, ler Réplica das urtigas naturalmente me faz voltar a “As Réplicas de Nina”, de Arthur Rimbaud. Numa relação quase quiasmática, por alguma razão misteriosa, o título do poema de Rimbaud está no plural, um poema que faz as vezes de um diálogo teatral cuja réplica de Nina é a contestação, o verso final: “E o meu emprego?”. No entanto, a dica da recolha de Tatiana está ainda no início do discurso d’Ele:
Ele. – Vamos, meu peito contra o teu,
Bem juntos, hã!?,
Gozar o ar puro, o azul do céu
Desta manhã

De fresco sol que banha o dia
De vinho? ... e, por
Todo o bosque, que se inebria
Mudo de amor,

Ver cada galho que desperta,
Claros botões,
Sentindo, em cada coisa aberta,
Carne em tensões:

E atirarás para as urtigas
Teu penhoar,
Rosando o ar azul que abrigas
Em teu olhar,

(...)

O título do livro de estréia em poesia de Tatiana Pequeno vem no singular como se replicasse tão somente as urtigas. E, no entanto, replica e cita toda uma constituição familiar: “teu corpo, pai/ exumado na data dos meus anos” (p. 32); “enquanto meu pai, pedra de toque,/ toma sol sem aura no seu corpo de lítio” (p. 53); “quando o pai subiu ao monte para de lá cair/ magma e monstro” (p. 59); “reconheci no aspecto homogêneo da arnica/ a benfeitoria dos apaches, meus irmãos.” (p. 34); “Dois dos meus filhos estão/ suspensos através de/ um buquê de escorpiões” (p. 38); “usar o véu de nossa/ senhora das dores e saber como foi para ela/ ter vindo de tão longe para viver um poeta morrendo/ nas mãos furadas de cerzir a família” (p. 49). Há pelo menos três aparições do pai e são presenças órfãs, ausentes enquanto “(as mães aqui estão de passagem)” (p. 59). Enquanto imagino um “corpo de lítio”, vem-me à mente o “Lithium” do Nirvana. É uma genealogia poética de renda cravejada de peças preciosas e de balas, ou melhor, “com cravas nas linhas/ e sangue de bala escorrendo no bordado” (p. 49). A estirpe familiar forma um ciclo completo de vida e morte que vai dos “folículos na base” (p. 49) a “a morte era de novo arrumar os armários” (p. 63); da “ogiva do meu filho” (p. 78) a “os meus avós rezando e sem fé” (p. 49). E é também uma linhagem de réplicas que vai progressivamente de Maria Gabriela Llansol a Ian Curtis, Al Berto a Chan Marshall. E Orides Fontela. As referências literárias, musicais, pessoais são aqui cerzidas por Tatiana.
Há neste ciclo de vida e morte um elemento elementar, a água, que também adquire um viés no negativo, quer dizer, a água não é límpida, condição para transporte, mas torna uma força destrutiva. “Allegro diabolico” é título do poema e referência a um allegro de Béla Bartók, é dedicado “para os amigos com muitas coisas em água”, coisas astrológicas, psicológicas, afetivas e afetadas. O poema cresce segundo a ética do fundo mar e seus peixes, ostras, polvos e arraias; é um mundo subaquático com “neurologia aquática”, “sebes afogadas” e “metrô hidroviário”, um mundo a postos de ser engolido por uma onda e vivermos todos numa nova era, numa “comunidade tão sadia”, segundo o ritmo e o movimento das águas. Mas é que o poema fala de uma clínica e de uma “moça ansiolítica” a “dançar/ ao som da divisão da alegria”, a dançar o allegro e pode ser que toda a comunidade sadia possa ser “vista através do aquário de prata”. Mas, como disse, a água torna uma força destrutiva: “a água destruiria a Casa” e vivemos mesmo todos numa nova era movida por águas moventes de “uma experiência contínua de mar/ e merda na cachoeira de lama” (p. 50-51).
Gosto de “lullaby 6000” (também título de uma faixa de The Czars). Há uma imagem cíclica, não só genealógica ou da relação entre vida e morte, que são relações inerentes, como o “feixe do teleférico”, um transporte que permite a travessia, a mudança da paisagem. Entretanto, conforme a imagem do teleférico, penso no transporte circular que Bruno S. toma no final de Stroszek (Werner Herzog, 1977), filme a que Ian Curtis assistiu e em seguida suicidou-se. Neste filme, como em Também os anões começaram pequenos (Herzog, 1970) há uma imagem emblemática que é a de um carro posto em movimento, sem motorista, a desenhar um círculo. Stroszek entra num teleférico e contorna uma imagem regressiva de andar à volta de si mesmo, num eterno e perverso retorno. O poema “lullaby 6000” provoca a intenção de ser um texto de violência, “Não é verdade que o que me dás/ seja suave”, de tensão sexual que passa pelo “corpo”, pela “extensão”, pelo “falo”, pelo “trabalho de/ escavação”. E, logo a seguir, uma pergunta, quase ao molde do poema de Rimbaud, quase uma revisitação de “As réplicas de Nina”: “Lançarias comigo o feixe do teleférico?”. Eu diria que esta é uma pergunta litoral, quer dizer, é um chamado, um convite para entrar na roda e é também um pedido vigoroso para formar um círculo de vício. É esta voz perversa que espera “que estejas preparando o retorno para ti” (p. 72). E pode ser a mesma voz de um outro poema, como “engano”: “Dormias/ e nos intervalos/ mal sabias/ o meu nome” (p. 79) que parece mesclar a presença do amante indiferente e da mulher capaz de fazer de tudo para “simplesmente” “te fazer/ ficar por mais horas até que o pavor/ me dissipasse a água e enfim fôssemos/ iguais na condição da chuva e o teu/ marco no meu tronco fosse algo/ que nunca mais pudesses levar ou tomar/ de volta.” (p. 70). Este poema de tensão sexual traça uma tensão poética. Por isso, Litoral. E aqui peço licença para citar “Os sentidos do acidental” de Jorge Fernandes da Silveira, que confessa no prefácio a Réplica das urtigas gostar tanto deste Poema: “Gosto sobretudo deste modo de estar à beira do corpo do outro como se estivesse (sic) num litoral, lugar há muito confortável para o literário saber-se entre o literal e o metafórico” (p. 19-20). E confesso que gosto desta imagem limite, desta imagem litoral do “olímpico gesto de tatear as tuas/ costas de navio ao erro do exílio” (p. 70) neste livro em que, tensamente, “morte e vida/ irmana” .


Evelyn Blaut Fernandes
Rio, 18 de novembro de 2010.

JORGE, Luiza Neto. Poesia. Poesia. Organização e prefácio de Fernando Cabral Martins. 2. ed. Lisboa: Assírio e Alvim, 2001, p. 234.

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