quinta-feira, 19 de novembro de 2009

ENCONTRO-ME NO NOVO

__________ a atribuição do Prémio D. Dinis, da Casa de Mateus, ao meu livro Um Falcão no Punho, colocou-me numa situação nova e paradoxal.
Na realidade, é este o primeiro prémio, de incidência mais geral, que me é atribuído em vinte e cinco anos de vida literária. Vivia sem pensar nos prémios, e, quase sem incentivo, porque me parecia irreal que mos atribuíssem. Percebo, na serenidade, o sentido e a lógica do meu caminho; entendo, sem formular juízos, as necessidades mundanas, na acepção patrística do termo, dos meios literários; compreendo uns e outros o suficiente para que esta situação que estou vivendo não fizesse parte dos meus objectos de espera. Mas isso, que eu não esperava, nem desejava, veio a acontecer-me, pois, sob a forma do imprevisível.
E encontro-me, assim, no novo.
Novo que é, no contexto do que venho escrevendo quase desde o início, um paradoxo. Tenho testemunhado, nos oito ou dez livros que até hoje publiquei, sobre a incompatibilidade radical entre o mundo dos Príncipes e o mundo das gentes. Incompatibilidade que, à medida que vou avançando na elucidação do objecto da minha visão, me parece não só radical mas igualmente insanável, uma espécie de ferida marca distintiva que nos separa, entre os humanos, uns dos outros.
Chego a pensar que nos concebemos mal, que nos imaginámos disformes, tal é o espanto que suscita, na alma de quem vê, o poder: o facto de que o mundo “tal como é”, “assim”, carece de evidência.
Essa ferida não separa os ricos dos pobres, nem os opressores dos oprimidos, nem se traduz em níveis de rendimento, mesmo se historicamente a divisão a que me refiro tomou essas formas várias de disfarce. Não, essa ferida separa os atentos e os distraídos, os mornos dos intensos, os necessitados de misericórdia e os orgulhosos. Se, no que até hoje escrevi, algo deva ficar, desejaria que fosse isto:
Há uma história silenciosa dos intensos que, porque necessitados de misericórdia, não impuseram aos seus congêneres as cadeias da explicação, nem miragens para o desejo. Gostaria que sobrevivesse a afirmação que nós somos epifanias do mistério, e mistério que nos nossos balbuciamentos se desenrola.
O paradoxo é, assim, de eu o estar dizendo precisamente aqui, ao aceitar e agradecer o gesto que para comigo tiveram, continuando eu sempre sem saber porque teve esse gesto em mim um seu destinatário. Tomo-o na sua acepção radical de fraternidade entre nós diante do sentido, como um momento em que partilhámos um dos bens da Terra que, para mim são cinco:
O conhecimento, a abundância, a generosidade, o prazer do amante e a alegria de viver.

Maria Gabriela Llansol, Casa de Mateus, na atribuição do Prémio D. Dinis de 1985 a Um Falcão no Punho.

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