sexta-feira, 22 de outubro de 2010

um fármaco

IN: ARENDT, Hannah. Epílogo a A promessa da política. Rio de Janeiro: Difel, 2008. pp.266-269.


O moderno crescimento da ausência-de-mundo, a destruição de tudo que há entre nós, pode ser também descrito como a expansão do deserto. O fato de vivermos e nos movermos num mundo–deserto foi primeiramente percebido por Nietzsche, também o primeiro a se equivocar em seu diagnóstico. Como quase todos que vieram depois dele, Nietzsche acreditava que o deserto está em nós, assim se revelando não apenas um dos primeiros habitantes conscientes do deserto, mas também, por essa mesma razão, uma vítima de sua mais terrível ilusão. A moderna psicologia é a psicologia do deserto: quando percebemos a faculdade de julgar – sofrer e condenar – começamos a achar que há algo errado conosco por não conseguirmos viver sob as condições da vida no deserto. Na pretensão de nos “ ajudar”, a psicologia nos ajuda a nos “adaptarmos” a essas condições, tirando a nossa única esperança, a saber: que nós, que não somos do deserto, embora vivamos nele, podemos transformá-lo num mundo humano. A psicologia vira tudo de cabeça para baixo: precisamente porque sofremos nas condições do deserto é que ainda somos humanos e ainda estamos intactos; o perigo está em nos tornarmos verdadeiros habitantes do deserto e nele passarmos a nos sentir em casa.
O maior perigo é que no deserto há tempestades de areia e que o deserto não é sempre plácido como um cemitério, onde tudo, afinal, continua sendo possível, mas pode criar um movimento próprio. Essas tempestades são movimentos totalitários cuja principal característica é serem extremamente bem ajustados às condições do deserto. Na verdade, elas não contam com nada mais e parecem, conseqüentemente, a mais adequada forma política de vida no deserto. Tanto a psicologia, o exercício de adaptação da vida humana ao deserto, quanto os movimentos totalitários, as tempestades de areia em que falsas ou pseudo-ações irrompem subitamente da quietude, colocam em risco iminente as duas faculdades humanas que nos permitem transformar pacientemente o deserto, e não a nós mesmos: as faculdades conjugadas da paixão e da ação. É verdade que nas mãos dos movimentos totalitários ou das adaptações da psicologia moderna nós sofremos menos: perdemos a faculdade de sofrer e com ela a virtude da resistência. Só quem é capaz de padecer a paixão de viver sob as condições do deserto pode reunir em si mesmo a coragem que está na base da ação, a coragem de se tornar um ser ativo.
As tempestades de areia ameaçam, além do mais, até mesmo os oásis do deserto sem os quais nenhum de nós poderia resistir, ao passo que a psicologia apenas procura nos tornar tão habituados à vida do deserto, que já não mais sentimos necessidade de oásis. Os oásis são as esferas da vida que existem independentemente, ao menos em larga medida, das condições políticas. O que deu errado foi a política, a nossa existência plural, não o que podemos fazer e criar em nossa experiência no singular: no isolamento do artista, na solidão no filósofo, na relação intrinsecamente sem-mundo entre seres humanos tal como existe no amor e às vezes na amizade – quando um coração se abre diretamente para o outro, como na amizade, ou quando o interstício, o mundo, se incendeia como no amor. Sem a incolumidade desses oásis não conseguiríamos respirar, coisa que os cientistas políticos deveriam saber. Se aqueles que têm que passar suas vidas no deserto, tentando fazer isso e aquilo preocupados com as condições do próprio deserto, não souberem usar os oásis tornar-se-ão habitantes do deserto mesmo sem a ajuda da psicologia. Em outras palavras: os oásis, que não são lugares de “relaxamento”, mas fontes vitais que nos permitem viver no deserto sem nos reconciliarmos com ele, secarão.
O perigo oposto é muito mais comum. Seu nome usual é escapismo: escapar do mundo do deserto, da política para... o que quer que seja, é uma forma menos perigosa e mais sutil de arruinar os oásis do que as tempestades de areia que começam exteriormente por assim dizer a sua existência. No afã de escapar, levamos as areias do deserto para os oásis assim como Kierkegaard, no afã de escapar da dúvida levou a própria dúvida para a religião ao dar o salto para a fé. A falta de resistência, a incapacidade de reconhecer e padecer a dúvida como uma das condições fundamentais da vida moderna, introduz a dúvida na única esfera onde ela jamais deveria entrar: a esfera religiosa, estritamente falando, a esfera da fé. Este é apenas um exemplo que mostra o que pode nos suceder no afã de escapar do deserto. Pelo fato de arruinarmos os oásis vitais quando vamos a eles com o propósito de escapar deles, às vezes é como se tudo conspirasse para generalizar as condições do deserto.
Também isto é uma ilusão. Em última análise, o mundo humano é sempre o produto do amor mundi do homem um artifício humano cuja potencial imortalidade está sempre sujeita a mortalidade daqueles que o constroem e a natalidade daqueles que vêm viver nele. É uma eterna verdade o que disse Hamlet: “O Mundo está fora dos eixos; Ó que grande Maldição/ Eu ter nascido para trazê-lo à razão!” Neste sentido, na sua necessidade de iniciantes para que ele possa começar de novo, o mundo é sempre um deserto. Mas da condição de não-mundo que veio à luz na era moderna – que não deve ser confundida com a condição cristã de outro-mundo - proveio a pergunta de Leibniz, Schelling e Heidegger: Por que existe alguma coisa em vez de nada? E das condições específicas de nosso mundo contemporâneo, que nos ameaça não apenas com o nada, mas também com o ninguém, talvez surja a pergunta: Por que existe alguém em vez de ninguém? Estas perguntas podem parecer niilistas, mas não são. Ao contrário, são perguntas anti-niilistas feitas numa situação objetiva de niilismo em que o nada e o ninguém ameaçam destruir o mundo.

Este texto é a conclusão de um curso intitulado “História da Teoria Política” , que Arendt ministrou na Universidade de Berkeley, na Califórnia, na Primavera de 1955.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

sábado, 2 de outubro de 2010

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Quisera dar nome, muitos, a isso de mim
Chagoso, triste, informe. Uns resíduos da tarde
Algumas aves, e asas buscando tua cara de fuligem.
De áspide.
Quisera dar o nome de Roxura, porque a ânsia
Tem parecimento com esse desmesurado de mim
Que te procura. Mas também não é isso
Este meu neblinar contínuo que te busca.
Ando em grandes vaguezas, açoitando os ares
Relinchando sombras, carreando o nada.
Os que me vêem me gritam: como tem passado
A aldeã de sua alteza? E há chacotas e risos.
Mas vem vindo de ti um entremuro de sons e de ciclos
Um labiar de sabores, um sem nome de passos
como se, águas pequenas desaguassem
Num pomar de abios. Como se eu mesma
Flutuasse, cativa, ofélica, sobre a tua Grande Face.

Hilda Hilst. Do Desejo.