quinta-feira, 26 de março de 2020

por que babu não dança?


uma amiga escreveu um texto sobre gordofobia na quarentena.
uma das perguntas mais inquietantes do texto dela entrou nos meus sonhos, permeou duas sessões de análise, tem me feito bem, mal; a pergunta, então, me vivifica, resseca minhas mãos e eu resolvi vir aqui escrever para me manifestar.
babu é um ator que, neste momento, participa de um reality show, o big brother brasil. dias desses, babu disse que estava feliz de estar na casa confinada do reality, e que muita coisa tinha se ressignificado pois ele estava convivendo, depois de muito tempo deprimido, e estava até dançando. babu é um homem negro, obeso, com uma protusão da arcada dentária inferior. seu apelido - babu - é a sua tentativa de ressignificar o racismo vivido ao longo de sua vida. babu então não como macaco, babu homem, babu humano, sujeito que dança.


por que babu não dança

babu não dançava há muito tempo
ele chora escondido pela casa
dizendo
eu acreditava que não duraria
aqui nem uma semana

babu, errar teu vocativo é humano
digito baby e não babu
y e u ao lado um do outro no teclado
te chamo baby
negro gato
aqui de perto
próximo da tradução que faço
do poema hunger for love
de uma escritora mística do século
treze
hadewijch da antuérpia

babu, acho que você nunca foi à
bélgica
nem eu
mas talvez seu corpo como o meu
ficasse intrigado com este poema
que fala, dentre outras coisas,
do que é central como seu título
fome de amor
e no nosso caso, baby
deus também não nos desculpa

uma vez alguém que me escrevia
muitos versos e cartas de amor
disse
escuta, meu bem, a minha família
jamais aceitaria
uma mulher com um nariz tão grosso
a dieta eu sei que você faria
o cabelo a gente alisaria
mas o nariz
o nariz denuncia

é, babu, eu sei porque você não dançava
o corpo gordo faz ondas quando mexe
no sexo isso é mesmo mais gostoso
mas ao vivo ninguém reconhece
o corpo gordo quando balança
faz a cabeça dos bacanas ficar possessa
mesmo os parceiros de estudos de gênero
não admitem a gordura plissada
se for corpo pardo negro
já disse a jota mombaça
é monstro ou monstra
pior se tiver cabelo eriçado

as moças lisas do programa
riram da tua existência
de repente
teu cabelo passou a ser
debochado pelo uso de um pente
as princesas feministas
confundiram com um tridente
riram enquanto você ressoava
o sono excessivo da fome de amor

fóbicas e fóbicos da academia
gerações massivas de narcisos
fabricam e formulam coleções
de olhares como os delas com ou sem
recortes de raça, sexualidade,
gênero,
até para deus gordura é pecado

então eu sei por que você não dança,
babu baby
espelho cortado
amigo e inimigo de mim
dançar é abrir o corpo
livrar-se da ameaça da queda
dançar talvez seja
convidar o monstro
tirar a máscara
dançar talvez seja
calar a recusa do outro
e fazer pelo tempo que for
a própria festa
livrando-nos do que hadewijch
acolhe em seu poema
sobre viver sob o jugo
saciado
de uma
sagrada aflição.
















quinta-feira, 19 de março de 2020

confundiu-se por muitos dias
o mar que iniciava o teu
nome. no fundo havia inexato
o que não podia se
mesmo ser



resguardo

estou com os olhos guardados e
a miragem não engana formato
fingem eles que acredito esquecem
de onde venho pensam que aquelas
armas também não eram minhas.
há tantas gerações de pedras sobre
as bocas que as estratégias de moer
palavras resvalam no dissídio das vespas
ou naquilo que um samba goza.
no fundo, o silêncio é também pedido
de clemência. Uma fogueira em que
se queima a língua desejosa e o
perigo da vantagem sobre a pequenez.


covid-19

estranho retornar aqui depois de tanto tempo
e agora quem hesita no tempo mais uma vez
somos nós ardendo com uma mão em brasas
falamos de dor e abandono com as pernas
inchadas
as bocas cheias vazando comida e saudade
seguimos num bunker com 38 graus
neste sexto dia da nossa quarentena