quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

é melhor assim é
pousar o vento não vibrar
mais um acordo sem
medula outro ponto voraz é
melhor
assim as gavetas se prendem
impedem a coluna das formigas
na glicose um
rastro de formas evoca o teu pouso
sem acordo é melhor assim
uma solidão resistente na luz dos
supermercados, amando a ossatura
dos jovens sobre moléstia nova
pelas mãos de ervas a
terra trabalhada saúda seu
mutismo
a oceania assim
os pingos do amor em fim
melhor melhor recolher e pousar
panos de limpeza em acordo
(rápido, a mim ilumina)as
formigas sabem se é melhor sem
gotas, enfim o que vaza
podia, mas não é o cheiro das ervas
acontece um asteróide de palavras sem
paz o mar
é melhor assim ver que ter o teu
corpo não é juízo é várzea
sobre charco, morses e holocausto
líquido assente platéia
é falso não doer assim
a miragem das lógicas sem
rastro, formas
mentira, nunca houve suspeita
sobre a terra é sangue
de ternura
nos pingos para a fábula das urtigas
acordo entre os guindastes fortes
trégua de saída que sobre nove andares
cansa análise de safena
desmorona os ossos, venta poeira
pousam as mágoas das gavetas
aceno enorme sobre a costura da cama
vaza vaza
estanca aprende agora
ela é possível somente inteira
não, então nega concórdia
cansa
vibração de pássaros, recolho as pontes
espadas ela inteira, inteira
recebe a espessura do amor nunca
um guindaste não pode ser pequeno
sirenes de outra ternura imolam
as poças mas feche a gaveta como
gravar cimento sobre as portas?
vôo da velocidade, música com acenos



é melhor assim

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Debaixo do colchão tenho guardado
o coração mais limpo desta terra
como um peixe lavado pela água
da chuva que me alaga interiormente
Acordo cada dia com um corpo
que não aquele com que me deitei
e nunca sei ao certo se sou hoje
o projecto ou memória do que fui
Abraço os braços fortes mas exactos
que à noite me levaram onde estou
e, bebendo café, leio nas folhas
das árvores do parque o tempo que fará
Depois irei ali além das pontes
vender, comprar, trocar, a vida toda acesa;
mas com cuidado, para não ferir
as minhas mãos astutas de princesa.

António Franco Alexandre. "Quatro Caprichos".

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

eu não sei se é o calor, se é o inferno astral, o mundo mesmo ou o quê, fato é que sair de casa é GARANTIA de aborrecimento. acho que por causa da tese eu ando 99% mais reclusa, e quando saio à rua é para muita necessidade... vou aproveitar para falar mal.

1) Sites de atendimentos a clientes: Sorvete Kibon. agora você entende porque ele tem custado 11,90 no Pão de Açúcar! Claro, porque o de Passas ao Rum é só um sorvete de creme com alguma essência aumentada. Passas? A última caixa de 2litros que eu comprei continha 3! A unilever tá se fodendo pra você. só pensa no faustão e nas promoções de consumo. o setor de reclamações do cliente que compra Kibon nunca está disponível para receber reclamações. tentei o dia inteiro. hoje. e ontem também.

2) Cinemas: não sei se essa é uma prática predominantemente carioca, mas ir ao cinema nesse lugar é certeza absoluta de aborrecimento. tenho a impressão de que estão todos num climinha pró-indie de discutir as supervalorizadas questões universais que os filmes lançam. MAS POR QUE CARALHOS AS PESSOAS NÃO FAZEM ISSO DEPOIS, NOUTRO LUGAR? por que todo mundo acha que eu quero saber o que elas pensam?
e mais: que merda de modinha é essa de falar alto como se tivesse dando palestra?

3) Embrutalhamento: seja no ônibus, no bar, na lojinha fuleira do saara ou na boutiquezinha do leblon onde o sapatinho mod custa 450,00 as pessoas são mal-educadas. fato. eu tenho a impressão de que ninguém mais fala obrigado, com licença, por favor e etecéteras básicos. me sinto muito babaca quando agradeço o troco da cobradora de ônibus e ela fica me olhando com cara do tipo odeio gordas simpáticas. eu não sou simpática. só acho que uma delicadeza mínima é necessária para se conviver. fiquei impressionada de pegar o metrô ontem cedo, por volta das oito e meia da manhã. todo mundo ri profundamente. as pessoas acham engraçado empurrar. acham engraçadamente normal o transporte caro que é o metrô estar cheio daquele jeito. uma pirigueti gritou quando entrou na central: nós empurra porque os bacana num vão pro meio. mesmo não concordando exatamente com ela achei que foi um princípio interessante da consciência de classe.


juro que tenho tentado aprender sobre a misericórdia, sobretudo com a Llansol. mas acho que nesse calor, nesse lugar, e sem uma perspectiva legitimamente cristã é bem difícil praticar isso.

ENCONTRO-ME NO NOVO

__________ a atribuição do Prémio D. Dinis, da Casa de Mateus, ao meu livro Um Falcão no Punho, colocou-me numa situação nova e paradoxal.
Na realidade, é este o primeiro prémio, de incidência mais geral, que me é atribuído em vinte e cinco anos de vida literária. Vivia sem pensar nos prémios, e, quase sem incentivo, porque me parecia irreal que mos atribuíssem. Percebo, na serenidade, o sentido e a lógica do meu caminho; entendo, sem formular juízos, as necessidades mundanas, na acepção patrística do termo, dos meios literários; compreendo uns e outros o suficiente para que esta situação que estou vivendo não fizesse parte dos meus objectos de espera. Mas isso, que eu não esperava, nem desejava, veio a acontecer-me, pois, sob a forma do imprevisível.
E encontro-me, assim, no novo.
Novo que é, no contexto do que venho escrevendo quase desde o início, um paradoxo. Tenho testemunhado, nos oito ou dez livros que até hoje publiquei, sobre a incompatibilidade radical entre o mundo dos Príncipes e o mundo das gentes. Incompatibilidade que, à medida que vou avançando na elucidação do objecto da minha visão, me parece não só radical mas igualmente insanável, uma espécie de ferida marca distintiva que nos separa, entre os humanos, uns dos outros.
Chego a pensar que nos concebemos mal, que nos imaginámos disformes, tal é o espanto que suscita, na alma de quem vê, o poder: o facto de que o mundo “tal como é”, “assim”, carece de evidência.
Essa ferida não separa os ricos dos pobres, nem os opressores dos oprimidos, nem se traduz em níveis de rendimento, mesmo se historicamente a divisão a que me refiro tomou essas formas várias de disfarce. Não, essa ferida separa os atentos e os distraídos, os mornos dos intensos, os necessitados de misericórdia e os orgulhosos. Se, no que até hoje escrevi, algo deva ficar, desejaria que fosse isto:
Há uma história silenciosa dos intensos que, porque necessitados de misericórdia, não impuseram aos seus congêneres as cadeias da explicação, nem miragens para o desejo. Gostaria que sobrevivesse a afirmação que nós somos epifanias do mistério, e mistério que nos nossos balbuciamentos se desenrola.
O paradoxo é, assim, de eu o estar dizendo precisamente aqui, ao aceitar e agradecer o gesto que para comigo tiveram, continuando eu sempre sem saber porque teve esse gesto em mim um seu destinatário. Tomo-o na sua acepção radical de fraternidade entre nós diante do sentido, como um momento em que partilhámos um dos bens da Terra que, para mim são cinco:
O conhecimento, a abundância, a generosidade, o prazer do amante e a alegria de viver.

Maria Gabriela Llansol, Casa de Mateus, na atribuição do Prémio D. Dinis de 1985 a Um Falcão no Punho.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

extintos foram os grossos timbres
da chuva vesta inteira e
só era a cantiga que ficava
muda
na cor manchada de tempo
que o lençol de suor deixou
em seu aspecto de mar a sal
envolto no seu tecido frágil
na minha voz pequena
, e cadentes vieram os passos
o volume exilado da primavera
nunca sobre os dias abafados
esse torpor de nadar nos ossos
a variação de ter de comer
verde. içar uma trégua entre
o coração e as raízes para
uma segregação da paz no centro
sísmico de um gozo vago ou de
choro sôfrego. importa não dizer
o nome, fingir a sério deleitar
as cores claras da noite para
novamente emudecer por horas
e tornar a sedimentar as pedras
nos seus lugares atrás da janela
do pátio fundo em cama de viúvo
sobrevivente ao pássaro
a memória de novembro e seus
anos tantos sempre a mais.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Não há mais sublime sedução do que saber esperar alguém.
Compor o corpo, os objectos em sua função, sejam eles
a boca, os olhos ou os lábios. Treinar-se a respirar
Florescentemente. Sorrir pelo ângulo da malícia.
Aspergir de solução libidinal os corredores e a porta
Velar as janelas com um suspiro próprio. Conceder
às cortinas o dom de sombrear. Pegar então num
objecto contundente e amaciá-lo com a cor. Rasgar
Num livro uma página estrategicamente aberta.
Entregar=se a espaços vacilantes. Ficar na dureza
Firme. Conter. Arrancar ao meu sexo de ler a palavra
Que te quer. Soprá-la para dentro de ti ____________
_______________________ até que a dor alegre recomece.

Maria Gabriela Llansol. O Começo de um Livro é Precioso.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

menarca





para perto, para trás, eu disse oi, você chega, chama como se fosse véspera já e eu acordo num local depois do pinheiro, de branco, ainda. a mancha vermelha não estava mais. nunca tinha sido. até.

domingo, 1 de novembro de 2009

Make this night loveable,
Moon, and with eye single
Looking down from up there,
Bless me, One especial
And friends everywhere.

With a cloudless brightness
Surround our absences;
Innocent be our sleeps,
Watched by great still spaces,
White hills, glittering deeps.

Parted by by circumstance,
Grant each your indelgence
That we may meet in dreams
For talk, for dalliance,
By warm hearths, by cool streams.

Shine lest tonight any,
In the dark suddenly,
Wake alone in a bed
To hear his own fury
Wishing his love were dead.


W.H. Auden, "Nocturne".
Lay your sleeping head, my love,
human on my faithless arm;
time and fevers burn away
individual beauty from
thoughtful children, and the grave
proves the child ephemeral:
but in my arms till break of day
let the living creature lie,
mortal, guilty, but to me
the entirely beautiful.

Soul and body have no bounds:
to lovers as they lie upon
her tolerant enchanted slope
in their ordinary swoon,
grave the vision Venus sends
of supernatural sympathy,
universal love and hope;
while an abstract insight wakes
among the glaciers and the rocks
the hermit's sensual ecstasy.

Certainty, fidelity
on the stroke of midnight pass
like vibrations of a bell,
and fashionable madmen raise
their pedantic boring cry:
every farthing of the cost,
all the dreadful cards foretell,
shall be paid, but from this night
not a whisper, not a thought,
not a kiss nor look be lost.

Beauty, midnight, vision dies:
let the winds of dawn that blow
softly round your dreaming head
such a day of sweetness show
eye and knocking heart may bless.
find the mortal world enough;
noons of dryness see you fed
by the involuntary powers,
nights of insult let you pass
watched by every human love.


W.H.Auden, "Lullaby".
levo você até o mirante

pela beira mais tenra do morro

para que se abram à vista as primas

tuas palavras sortidas a pino

a contento

no esmo breve de guardar o cendal



levo você pelas rudes fulores

das mais haustas sazonas àquela que chã

me povoa revelar



levo você nas raras andorinhas

horas

nos paradeiros bordados num silêncio

solícito ao menor atestado do amor



levo você até hoje

como se fosse de mim um sinal.



Sebastião Edson Macedo. "Postal".

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

"Opalas"


A espera desmancha o
bronze nos meus cabelos
desvia a lonjura das máquinas
para o deserto e eu opero
uma transformação conhecida
de acordar sempre no que se
desfaz das vozes e das estradas.
não é digno de rememorar
o nome, a odisséia excusa
no equilíbrio sobre as palafitas
ou uma lava de castanho atravessando a
insuficiência
do amor e da salvação no término
de uma trança adulta que se desfaz
para em mim vingarem os açudes
os vulcões as coxas entreabertas no
domingo e
o sol.
e se dobrarem os membros no
aguardo da safra mitológica
em ninho sedimentada
vai desejar um mundo aquela casa,
uma flor dentro do copo ao lado dos grampos
sobre uma região tornada pedra
carro espera
uma habitação possível do esquecimento.
eu finjo ter paciência...

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

domingo, 25 de outubro de 2009

luís capucho, "máquina de escrever".

bowie & corgan, "all the young dudes".



it´s over. um pouco mais e fica tudo muito ridículo.
esperei pela casa nova e limpa por dias. agora que ela é e está fico atrás das plantas, esperando que elas vivam mais por causa do verão.

nina simone, "feelings".

O Espelho

Há um momento em que o espelho
recusa a imagem. Percebes,
então, que o vazio
é contrário à luz. Que o nada
e o salitre são
a outra face da transparência.

Albano Martins. Cadernos de Serrúbia.
A tristeza cortesã me pisca os olhos

Eu procuro o mais triste, o que encontrado
nunca mais perderei, porque vai me seguir
mais fiel que um cachorro, a tristeza sem verbo.
Eu tenho três escolhas: na primeira, um homem
que ainda está vivo à borda de sua cama me acena
e fala com seu tom mais baixo: "reza pra eu dormir, viu?"
Na outra, sonho que bato num menino. Bato, bato,
até apodrecer meu braço e ele ficar roxo. Eu bato mais
e ele ri sem raiva, ri pra mim que nele.
Na última, eu mesma engendro este horror:
e sirene apita chamando um homem já morto
e fica de noite e amanhece, ele não volta
e ela insiste e sua voz é humana.
Se não te basta, espia:
eu levanto o meu filho pelos órgãos sensíveis
e ele me beija o rosto.

Adélia Prado. Poesia Reunida.

sábado, 10 de outubro de 2009

minha casa parece ter sido dominada por formigas.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Afinal,

[este texto ia sair ao fim do livro, como parte (pretensamente) explicativa do que é escrever poesia, no meu mundo. acabou não saindo porque eu preferi deixar que o livro por si mesmo se mostrasse. talvez faça falta no sentido de me colocar num lugar de simplicidade, não de um modo puramente adeliano, mas entre aspectos de um punho radicalizado no real, que acorda, sofre, cozinha, ama, cuida, trabalha e trabalha muito (sobre) as escritas e deseja ardentemente encontrar um modo suportável e, quem sabe, belo, de enfrentar o mundo.]


A poesia sempre esteve, pelo menos para mim, num lugar onde fosse possível falar de duas experiências básicas: a da comoção e do desolamento. A extensão do que se mostra entre uma e outra também me faz estar em zonas limítrofes para dizer e para sentir. Escrever e publicar não eram palavras que pudessem estar juntas, e desde muito tempo sabia que a exposição tanto da comoção quanto do desolamento poderiam ameaçar essas réplicas (frágeis como pétalas) dadas ao mundo. É recente, portanto, a confiança de que o que escrevo pode me fortalecer ao ponto de ultrapassar lugares, cadáveres, vivos. Desse modo, a minha escrita funciona(ria) como algo que se ergue sólido e firme como triunfo para os meus olhos cansados. É crente, como eu sou crente, de que nela há alguma salvação profana e também um lugar no qual vislumbro uma beatitude concreta como se, a partir dela, eu desejasse dialogar com os meus irmãos de misérias e assombros. A poesia é apenas um modo particular de enfrentar o mundo, de através de um universo microscópico estar à deriva com tantos outros: é como dar as mãos e ser recolhida para um lugar no qual gigantes de humanidade estiveram, e por lá eu pudesse desfrutar de uma compreensão fraterna, uma aquiescência amorosa. Este livro é, portanto, um fim, um retorno, uma porta de saída – corpo todo manifesto e uma chegada - vislumbre, lume: é a minha casa.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

iupi!

meu livro vai sair. mesmo. em novembro, pertinho do meu aniversário de 30 anos.
bem que a minha astróloga disse que o meu retorno solar prometia um filho em 2009.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

é a mesma coisa. o mesmo sal, o mesmo furacão, a mesma torrente aparentemente estapafúrdia, não importa o que eu faça. não importa que eu amadureça, que eu medite, faça yoga, terapia duas vezes por semana, caminhe 60 minutos diários, coma rúcula, que eu emagreça, que eu engorde, que eu esteja aqui, que eu esteja na patagônia, que eu esteja sozinha, que eu esteja acompanhada, que seja inverno ou verão, o que realmente acontece independe desses financiamentos baratos da cura que me vendem desde muito. é rápido, preciso, e quando dou por mim já estou soterrada por toneladas de água, como a catedral de ys, aos dois minutos e meio do famoso prelúdio do debussy ou na décima terceira repetição de alguma música que fala para mim algo secreto do qual eu compartilho. não há para quem ligar nessa altura porque não há o que dizer. pior: tudo vem de uma palavra maldita, de um olhar esquerdio, de um tom de voz mal colocado, de uma cena simples no ponto de ônibus, de um cheiro que me remeta a uma memória incurada ou ao fundo musical da vida. quando isso acontece - e acontece tanto, meu deus, há tanto tempo - eu ainda me vejo com o mesmo vestido branco com flor azul-marinho numa esquina de vento forte, rodando, rodando e concluindo que a única coisa a fazer é esperar parar de ventar porque não era mais possível andar contrariamente ao que fosse naturalmente tão mais forte que eu. assim, a aprendizagem da paciência é lenta feito sua matéria, o tempo. aguardo com carinho agora que a neurologia me permite respirar. espero que dessa vez o espaço para o próximo afogamento seja largo e, nessa extensão, um lume novo surja e me admoeste por estar tentando cumprir com delicadeza, apesar de, a responsabilidade de estar viva.
todos os tormentos enfileirados dando conta de me inquirir pessoalmente acerca desses 29 anos. microdespertares intervalando minha vida, minha vida e o que eu preciso fazer. eu não consigo fazer com essa música me punindo desde 2001.

domingo, 23 de agosto de 2009

terça-feira, 18 de agosto de 2009

first breath after coma



os nomes das canções são ouro.

domingo, 9 de agosto de 2009

Os ombros estremecem-me com a inesperada onda dos meus
vinte e nove anos. Devo despedir-me de ti,
amanhã morrerei.
Talvez eu comece a morrer na tua mão direita,
alterosa e quente na minha mão
sufocada. Aqui mesmo na europa
começa a vagarosa iluminação das giestas. É a minha vida
percorrida por um álcool penetrante, é a imediata
atenção ao misterioso trabalho da idade.

Vinte e nove anos agora, na europa, sobre os canais
sombrios da carne, sobre um vasto segredo.
Será apenas isso, um ponto móvel
de eternidade, isto – a sufocação veloz e profunda
da vida inteira na minha garganta? E depois
o acender das luzes, bruxelas como uma câmara
de archotes e ao alto as ameias
enevoadas dos astros? Devo olhar com uma grande memória aquilo que acaba na violência triste
do poema.

Estamos nos quartos, há flores nas mesas. De babilónia
partem rios. Por detrás das cortinas,
despeço-me. Amanhã vou morrer. Tenho
vinte e nove bocas urdindo
a falsa doçura da confusão. Os países constroem
a torre sombria do amor. Dá-me a tua mão
pensativa e antiga, deixa que se queime ainda um instante
a loucura masculina
da minha vida. Pensa um pouco na beleza
ignota das coisas: peixes, flores, o sono terrível
das pessoas ou o seu respirar
que arde e brilha e se apaga à superfície
das lágrimas ocultas. Pensa um pouco no sorriso
rapidíssimo
que jamais desaparece do silêncio, na candeia
que cobre com agulhas de ouro os escombros
dos lírios. E por cima de tudo estende
a tua pequena mão eterna. Cai
tu própria na treva quente da minha
cega mão masculina de vinte
e nove
anos. Tenho vinte e nove anos ou uma onda
inesperada que me estremece a carne ou a minha garganta
cheia de sangue actual – amanhã morrerei.

Vi um dia alguém tomar nas mãos, entre faúlhas
velozes, pedras que pareciam
imortais. Eram casas que se levantavam
sobre o meu coração. Vi que tomavam
animais feridos, flores imaturas, objectos
breves, imagens instantâneas e perdidas. Faziam
alguma coisa eterna. Era gente
de vinte e nove anos que se despedia dolorosa
pormenorizada
violentamente de uma parte de sua carne, a parte
mais iluminada de sua
carne de vinte e nove anos. Amanhã
morrerei.


Herberto Helder.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009




roubo declarado do Bernardo.
"As coisas que a literatura pode buscar e ensinar são poucas, mas insubstituíveis: a maneira de olhar o próximo e a si próprios, de relacionar fatos pessoais e fatos gerais, de atribuir valor a pequenas coisas ou a grandes, de considerar os próprios limites e vícios e os dos outros, de encontrar as proporções da vida e o lugar do amor nela, e sua força e o seu ritmo, e o lugar da morte, o modo de pensar ou de não pensar nela; a literatura pode ensinar a dureza, a piedade, a tristeza, a ironia, o humor e muitas outras coisas assim necessárias e difíceis. O resto, que se vá aprender em algum outro lugar, da ciência, da história, da vida, como nós todos temos de ir aprender continuamente."

Ítalo Calvino.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Quando a distante
prata, rondada
também pelo vôo dos homens, sem
chegar entrava,
redonda,
e nos olhava com olhos de olhar:

então
a palavra dor era uma taça de onde
subia ao nosso encontro a palavra
alegria - subia,
subia e passava por nós, subia
até nós dois, sob
o telhado,
até à cama onde a noite,
mestra
dos nossos corpos, esperava silenciosa, o seu
fundo, negro como o coração, cheio
da manhã.

Paul Celan. A Morte é uma Flor - poemas do espólio. Tradução de João Barrento.


you wanna speak like angels but you can´t.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

veja esta canção



La Cathédrale Engloutie, Debussy.
Desconheço o intérprete.
"La Cathédrale Engloutie", de Debussy

Creio que nunca perdoarei o que me fez esta música.
Eu nada sabia de poesia, de literatura, e o piano
era, para mim, sem distinção entre a Viúva Alegre e Mozart,
o grande futuro paralelo a tudo o que eu seria
para satisfação dos meus parentes todos. Mesmo a Música,
eles achavam-na demais, imprópria de um rapaz
que era pretendido igual a todos eles: alto ou baixo funcionário público,
civil ou militar. Eu lia muito, é certo. Lera
o Ponson du Terrail, o Campos Júnior, o Verne e Salgari,
e o Eça e o Pascoaes. E lera também
nuns caderninhos que me eram permitidos porque aperfeiçoavam o francês,
e a Livraria Larousse editava para crianças mais novas do que eu era,
a história da catedral de Ys submersa nas águas.

Um dia, no rádio Pilot da minha Avó, ouvi
uma série de acordes aquáticos, que os pedais faziam pensativos,
mas cujas dissonâncias eram a imagem tremulante
daquelas fendas tênues que na vida,
na minha e na dos outros, ou havia ou faltavam.
Foi como se as águas se me abrissem para ouvir os sinos,
os cânticos, e o eco das abóbadas, e ver as altas torres
sobre que as ondas glaucas se espumavam tranquilas.
Nas naves povoadas de limos e de anêmonas, vi que perpassavam
almas penadas como as do Marão e que eu temia
em todos os estalidos e cantos escuros da casa.

Ante um caderno, tentei dizer tudo isso. Mas
só a música que comprei e estudei ao piano mo ensinou
mas sem palavras. Escrevi. Como o vaso da China,
pomposo e com dragões em relevo, que havia na sala,
e que uma criada ao espanejar partiu,
e dele saíram lixo e papéis velhos lá caídos,
as fissuras da vida abriram-se-me para sempre,
ainda que o sentido de muitas eu só entendesse mais tarde.

Submersa catedral inacessível! Como perdoarei
aquele momento em que do rádio vieste,
solene e vaga e grave, de sob as águas que
marinhas me seriam meu destino perdido?
É desta imprecisão que eu tenho ódio:
nunca mais pude ser eu mesmo - esse homem parvo
que, nascido do jovem tiranizado e triste,
viveria tranquilamente arreliado até à morte.
Passei a ser esta soma teimosa do que não existe:
exigência, anseio, dúvida, e gosto
de impor aos outros a visão profunda,
não a visão que eles fingem,
mas a visão que recusam:
esse lixo do mundo e papéis velhos
que sai dum jarrão exótico que a criada partiu,
como a catedral se irisa em acordes que ficam
na memória das coisas com um livro infantil
de lendas de outras terras que não são a minha.

Os acordes perpassam cristalinos sob um fundo surdo
que docemente ecoa. Música literata e fascinante,
nojenta do que por ela em mim se fez poesia,
esta desgraça impotente de actuar no mundo,
e que só sabe negar-se e constranger-me a ser
o que luta no vácuo de si mesmo e dos outros.

Ó catedral de sons e de água! Ó música
sombria e luminosa! Ó vácua solidão
tranquila! Ó agonia doce e calculada!
Ah como havia em ti, tão só prelúdio,
tamanho alvorecer, por sob ou sobre as águas,
de negros sóis e brancos céus nocturnos?
Eu hei-de perdoar-te? Eu hei-de ouvir-te ainda?
Mais uma vez eu te ouço, ou tu, perdão, me escutas?


Jorge de Sena, Arte de Música.


chagall e esse azul que me persegue desde muito.
Carta Anônima


Tenho trabalhado tanto, mas penso sempre em você. Mais de tardezinha que de manhã, mais naqueles dias que parecem poeira assentada aos poucos, e com mais força enquanto a noite avança. Não são pensamentos escuros, embora noturnos. Tão transparentes que até parecem de vidro, vidro tão fino que, quando penso mais forte, parece que vai ficar assim clack! e quebrar em cacos, o pensamento que penso de você. Se não dormisse cedo nem estivesse quase sempre cansado, acho que esses pensamentos quase doeriam e fariam clack! de madrugada e eu me veria catando cacos de vidro entre os lençóis. Brilham, na palma da minha mão. Num deles, tem uma borboleta de asa rasgada. Noutro, um barco confundido com a linha do horizonte, onde também tem uma ilha. Não, não: acho que a ilha mora num caquinho só dela. Noutro, um punhal de jade. Coisas assim, algumas ferem, mesmo essas são sempre bonitas. Parecem filme, livro, quadro. Não doem porque não ameaçam. Nada que eu penso de você ameaça. Durmo cedo, nunca quebra.
Daí penso coisas bobas quando, sentado na janela do ônibus, depois de trabalhar o dia inteiro, encosto na vidraça, deixo a paisagem correr, e, penso demais em você. Quando não encontro lugar para sentar, o que é mais frequente, e me deixava irritado. agora não, descobri um jeito engraçado de, mesmo assim, continuar pensando em você. Me seguro naquela barra de ferro, olho através das janelas que, nessa posição, só deixam ver metade do corpo das pessoas pelas calçadas, e procuro nos pés delas aqueles que poderiam ser os seus. (A teus pés, lembro). E fico tão embalado que chego a me curvar, certo que são mesmo os seus pés parados em alguma parada, alguma esquina. Nunca vejo você - seria, seriam?
Boas e bobas, são as coisas todas que penso quando penso em você. Assim: de repente ao dobrar uma esquina dou de cara com você que me prega um susto de mentirinha como aqueles que as crianças pregam uma nas outras. Finjo que me assusto, você me abraça e vamos tomar um sorvete, suco de abacaxi com hortelã ou comer salada de frutas em qualquer lugar. Assim: estou pensando em você e o telefone toca e corta meu pensamento e do outro lado do fio você me diz: estou pensando tanto em você. Digo eu também, mas não sei o que falamos em seguida porque ficamos meio encabulados, a gente tem muito poder de parecer ridículos melosos piegas bregas românticos pueris banais. Mas no que eu penso, penso também que somos mesmo meio tudo isso, não tem jeito, e tudo que vamos dizendo, quando falamos no meu pensamento, é frágil como a voz de Olivia Byington cantando Villas-Lobos, mais perto de Mozart que de Wagner, mais Chacal que Van Gogh, mais Jarmush que Wim Wenders, mais Cecília Meireles que Nélson Rodrigues.
Tenho trabalhado tanto, por isso mesmo talvez ando pensando assim em você. Brotam espaços azuis quando penso. No meu pensamento, você nunca me critica por eu ser um pouco tolo, meio melodramático e, penso então tule nuvem castelo seda perfume brisa turquesa vime. E deito a cabeça no seu colo ou você deita a cabeça no meu, tanto faz, e ficamos tanto tempo assim que a terra treme e vulcões explodem e pestes se alastram e nós nem percebemos, no umbigo do universo. Você toca na minha mão, eu toco na sua.
Demora tanto que só depois de passarem três mil dias consigo olhar bem dentro dos seus olhos e é então feito mergulhar numas águas verdes tão cristalinas que têm algas na superfície ressaltadas contra a areia branca do fundo. Aqualouco, encontro pérolas. Sei que é meio idiota, mas gosto de pensar desse jeito, e se estou em pé no ônibus solto um pouco as mãos daquela barra de ferro para meu corpo balançar como se estivesse a bordo de um navio ou de você. Fecho os olhos, faz tanto bem, você não sabe. Suspiro tanto quanto penso em você, chorar só choro às vezes, e é tão frequente. Caminho mais devagar, certo que na próxima esquina, quem sabe. Não tenho tido muito tempo vezenquando até sorrio e fico passando a ponta do meu dedo no lóbulo da sua orelha e repito repito em voz baixa te amo tanto dorme com os anjos. Mas depois sou eu quem dorme e sonha, sonho com os anjos. Nuvens, espaços azuis, pérolas no fundo do mar. Clack! Como se fosse verdade, um beijo.

Caio Fernando Abreu, Pequenas Epifanias.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

I

Posso estar aqui
eu posso estar aqui perfeitamente pobre
um círio me acendi espora aguda
o vento ritmo negro assassinou-o

posso estar aqui
- o musgo é lento com a sombra -
e sei de cor a voz cega das canções
(viola de silêncio acorda-me)

que eu posso estar aqui perfeitamente pedra
insone
e um longo segredo impessoal
bordando a minha solidão.


II


Em cada braço um herança de horizonte
desde o naufrágio de um eco
em cada árvore
trago-me no sol
à hora dos contornos
no sol a voz
é mais difícil
o tempo mais ausente

trago um filho
que parte o caule às estrelas
é louco e sofre
e parte o caule às estrelas

Tragicamente o sol
põe luz nos braços
A morte é uma feira aberta em lua.


Luiza Neto Jorge. "5 Poemas para a Noite Invariável".

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Minha Órfã

Porque não quis te olhar, ficaste cega.
Sei que esperas por mim
desde o tempo em que usavas tranças e brincavas com arco.

Sei que esperas por mim,
mas eu não quis te olhar
porque me debrucei sobre o mito de outras,
porque não me sabes dar, pobre amiga,
o sofrimento e a angústia que formam a catástrofe.

Roxelane, Roxelane:
porque tens olhar morto e cabelos sem brilho,
boca sem frescura e sem expressão,
eu te desenhei e não ouvi teu apelo,
teu último apelo vindo da solidão e da infância remota.

Roxelane, Roxelane:
tua tristeza recairá sobre mim, assumirei tua orfandade,
conhecerás o gozo e verás desdobrar-se a esperança.
enquanto eu recolherei para sempre
a tua, a minha e a miséria de outros,
triste e apagada Roxelane, vitoriosa Roxelane.

Murilo Mendes. As Metamorfoses.

domingo, 19 de julho de 2009

Flame Trees

Kids out driving Saturday afternoon pass me by
I'm just savouring familiar sights
We share some history, this town and I
And I can't stop that long forgotten feeling of her
Try to book a room to stay tonight

Number one is to find some friends to say "You're doing well
After all this time you boys look just the same"
Number two is the happy hour at one of two hotels
Settle in to play "Do you remember so and so?"
Number three is never say her name

Oh the flame trees will blind the weary driver
And there's nothing else could set fire to this town
There's no change, there's no pace
Everything within its place
Just makes it harder to believe that she won't be around

But Ah! Who needs that sentimental bullshit, anyway
Takes more than just a memory to make me cry
I'm happy just to sit here round a table with old friends
And see which one of us can tell the biggest lies

There's a girl falling in love near where the pianola stands
With her young local factory out-of-worker, holding hands
And I'm wondering if he'll go or if he'll stay

Do you remember, nothing stopped us on the field
In our day

Oh the flame trees will blind the weary driver
And there's nothing else could set fire to this town
There's no change, there's no pace
Everything within its place
Just makes it harder to believe that she won't be around

Oh the flame trees will blind the weary driver
And there's nothing else could set fire to this town
There's no change, there's no pace
Everything within its place
Just makes it harder to believe that she won't be around



a versão original é da Cold Chisel, uma banda australiana.





sábado, 18 de julho de 2009

Cordeiro de Nanã

Mariana. 1

acena dura a paisagem
é outra ela que vem
noturna

virgem sarça da minha alegria.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Introdução à arte das montanhas


Um animal passeia nas montanhas.
Arranha a cara nos espinhos do mato, perde o fôlego
mas não desiste de chegar ao ponto mais alto.
De tanto andar fazendo esforço se torna
um organismo em movimento reagindo a passadas,
e só. Não sente fome nem saudade nem sede,
confia apenas nos instintos que o destino conduz.
Puxado sempre para cima, o animal é um ímã,
numa escala de formiga, que as montanhas atraem.
Conhece alguma liberdade, quando chega ao cume.
Sente-se disperso entre as nuvesn,
acha que reconheceu os seus limites. Mas não sabe,
ainda, que agora tem de aprender a descer.

Leonardo Fróes. Argumentos Invisíveis.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

O Destino

Não tive a má intenção de te prender
à minha vida. A música, o álcool,
todo o ouropel da noite, eu só quis
sossegar por algum tempo a dúvida

que me castigava, antes que a manhã
chegasse e a aranha do remorso
descesse pelo seu alimento à mesa
do pequeno almoço. Batemos

à mesma porta e chamaste destino
ao acaso. Zelava por nós, entre
as eléctricas estrelas, o pequeno deus
do amor? Era o que trazia ao peito

a divisa da derrota universal? Como vês,
foi sempre outra, e inútil, a minha
fé - mas perdoa, se puderes, o pouco
que soube fazer pela solidão dos dois.


Rui Pires Cabral

Annie Lee, Blue Monday.


Será que devíamos tatuar um coração na testa? Todos assim veriam: o coração subiu à cabeça. E como seria um coração azul-marinho, azul morte, um coração agônico, também poderíamos dizer: a morte subiu à cabeça. Só precisamos transformar em escrita o profundo susto que levamos.

Hugo Ball, Die Flucht aus der Zeit.

sábado, 4 de julho de 2009

O cercado

De que cor era o meu cinto de missangas, mãe
feito pelas tuas mãos
e fios do teu cabelo
cortado na lua cheia
guardado do cacimbo
no cesto trançado das coisas da avó

Onde está a panela do provérbio, mãe
a das três pernas
e asa partida
que me deste antes das chuvas grandes
no dia do noivado

De que cor era a minha voz, mãe
quando anunciava a manhã junto à cascata
e descia devagarinho pelos dias

Onde está o tempo prometido p'ra viver, mãe
se tudo se guarda e recolhe no tempo da espera
p'ra lá do cercado

(Dizes-me coisas amargas como os frutos)

Ana Paula Tavares. Antologia de Poesia Feminina Africana.
Sedento

És amável para homens estranhos: dá-me de beber, estou sedento.


Anacreonte. Fragmento 389 (PMG).

sexta-feira, 3 de julho de 2009




Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidasse "com suma piedade e sem efusão de sangue".
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo(ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sêmen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez
alguém está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão de ser em vão. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam "amanhã".
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.

Jorge de Sena, Metamorfoses.

quinta-feira, 2 de julho de 2009



krista biedenbach
mão única

- é proibido
voltar atrás
e chorar.

Orides Fontela, Teia.

quarta-feira, 1 de julho de 2009





vida longa a pina bausch.

terça-feira, 30 de junho de 2009

tua morte no meu dia de hoje
não ergueu com tinta um só golpe
de estado

nenhuma personagem em desespero
desarrumou os móveis do quadro
na parede da sala

onde nos sentaríamos

e onde nem um homem sequer em meia vida
pôde depois de se embebedar para te chorar
por mim

nem nos bares se conspirou
das noites escondidas
na biografia

eu no meu dia aqui
sem descrever
o paradeiro de um corpo

e mais do que nunca nada que eu cale
abafa o grito do teu lugar sobre o branco.

"Tua morte no meu dia", Virgínia Boechat.

domingo, 28 de junho de 2009

Modeste est ta fenêtre sur les sillons ingrats
sa bordure d´orties sous les ombres du nord
le chemin descendant de tout son vide vers
la banale demeure sur son fond d´herbes sèches
qu´affole en les couchant le vent sous ses rafales

opaque l´hologramme que tu es devenu
ombre em songe de plus sous les songes des ombres
le long des pierres noires que oublièrent l´homme

agonie d´avenir à l´écart qui chancelle
haut ciel de miroir froid si transparent de s´être
de présence evidente un matin évidé.

Jean Pérol.

segunda-feira, 22 de junho de 2009




O vôo é com os pássaros. Tiradentes, Mg.

Sinos na Igreja das Mercês em São João Del Rey

eu queria mesmo era ir numa festa junina.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

abres o mapa da europa e
assinalas o lugar perdido junto ao mar - o sol
fulmina a narceja e o leite sábio das mães
coalhou num sabor a plâncton e húmus

na floresta da janela virada ao mar
secaram os goivos dos navegantes e um cardo amarelo
irrompeu hirsuto e firme - o tempo chuvoso
alastra pelas ruelas insinuando-se na alma
uma babugem grossa de maresia - a europa afasta-se
com seus falhanços ao som dos tambores de água

recordas assim a noite varada à porta dos grandes frios
o corpo carbonizado que perdeu a nacionalidade
as cidades sem nome o acidente a auto-estrada
o recado deixado no café a cerveja entornada
o alarme na noite a fuga
a terra dos gelos eternos a viagem sem fim a faca
rente ao pescoço e os comboios e a ponte ligando
a treva à treva
um país a outro país - onde dissemos coisas que matam
e largam rastros de aço nas pálpebras

mas
no cansaço da torna-viagem no desalento de tudo
o mapa da europa ficou aberto no sítio
onde desapareceste

ouço o atlântico uivando de abandono
enquanto os dedos se cansam a pouco e pouco
na lenta escrita de um diário - depois
fecho o mapa e vou
pela crueldade desta década sem paixão.


Al Berto, "Mapa", de Horto de Incêndio.

terça-feira, 16 de junho de 2009

balancing glasses on your nose
by the crystal ball
purified of vulgar things
planted feet along the hall
i'm wearing a second skin
i'm wearing a second skin
balancing on a window sill
back against the wall
purified an old idea
contemplating on the fall
i'm wearing a second skin
i'm wearing a second skin

Hugo Largo. "Second Skin" do álbum Drum

1997 - 2009 hoje

há muitos anos o risco é uma fruta difícil
que congela para o movimento silencioso
das espécies e da brancura das grades em
off distante com vozes pretéritas.

é uma merda que a gritaria dos meninos
sentencie o que um domingo faz dos anos
ou que o mofo na louça diga apenas de uma
recolha que nunca tenha sido provável e
novamente demonstre esse risco jovem
das superfícies justapostas na brava
cor então antiga das frutas que incendeio
com a boca inflamada de sumos.

há muito tempo invalido a altura da praça
através da queda dos buritis para angariar
uma dança simples________permanente
casa ___ templo _uma seqüela________
suave,___________ como hálito de fruta.









*sem imitações llansolianas. a grafia dos espaços
é apenas porque estes templates não aceitam
espaços vazios entre as palavras. fato.

sexta-feira, 5 de junho de 2009


Lutadores

O pão das estrelas me pareceu tenebroso e rijo no céu dos homens mas, em suas mãos estreitas, li a luta dessas estrelas convidando outras: emigrantes da ponte, sonhadoras ainda; recolhi o seu suor dourado, e por mim a terra parou de morrer.


René Char, O nu perdido.

repara
que havia meio dia ainda
para secarem os cabelos
e os pés dançarem uma casa
avessa ao meu modo de dar
aceno.
percebe
um tronco caído sobre a rua
e incerto o silêncio de assim
costurar quem me dobra.

agarra o meu braço à saída e
deposita em mim o que é caro
a toda mentira e vaza
não vaza
nada
a corda imensa a janela
muito fundo.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Afectos, laços humanos, expectativas, perfis de pensamento
tudo passa pelo crivo intransigente da noite, até que se atinja ____________
Se houver algo que resista à devastação interrogativa ______
A base da espiral sobre que giram os destinos dispersos da minha vida,
todas essas coisas que dizem eu a falar de mim, como se o seu
corpo não
recebesse, todos os dias, ordem de morrer;

mas, todos os dias, uma projeção de sucedidos,
rios sobre lagos,
lagos sobre fontes,
fontes sobre cascatas,
cascatas sobre lágrimas,

tenta abrir caminho por terrenos movediços vindos do lugar onde fui criada antes de ser concebida; e eu só,

a sós comigo (um sou engolido e sobressaindo à tona), tentando unificar as sombras inimigas,
peço apoio ao ambo, ao texto, à floresta e aos animais

porque demasiado implacáveis se podem mostrar as sombras da vida

peço apoio aos que não têm onde se apoiar,
àqueles que conhecem com mais qualidade a força da sombra e da exclusão

E o recado que recebo é sempre idêntico (até que o meu sou veja que assim é)

O sem-apoio apóia-se na falta de apoio
que leio (ou a ler)

O poema é sem-apoio.


Llansol, Onde Vais, Drama-Poesia?.

segunda-feira, 25 de maio de 2009


Se vós soubésseis o que é a ilha de Ana de Peñalosa, que é, por excelência, a imagem com que se resiste, não por haver rochedos defensivos, para o que serviria uma fortaleza, mas erva, mais erva, e a linha onde toca a perdida nota de música.

Há dias, como o de hoje, em que tudo me parece envolvido por uma tristeza de montanha não neglijável. Observo-o com candura e, se a descrevo mal (mal a descrevo), é para penetrar nela com a consciência da sua realidade. Sera´a ausência dos seres humanos que cria a forte tristeza da montanha? Ou será, pelo contrário, a presença dos seres que inflama de vazio este lugar?

Vejo a chama que brilha,

mas não vejo a vela que arde.



Llansol, Na Casa de Julho e Agosto. p. 112




terça-feira, 19 de maio de 2009


é difícil manter vivas flores e plantas num apartamento térreo, de fundos e com vista para o concreto. daí o orgulho.
eu escrevi um livro que não houve. agora que a não existência dele é mais verdadeira que a sua possibilidade de vir a ser, reconheço o quanto a poesia é difícil para mim por conta da relação ambígua que tenho com guardar segredos. resolvi dizer isto porque quis postar o último poema do meu livro, e acho, obviamente, que esse texto diz porque quem não publicou é (ou foi?) a Tatiana Pequeno.


Engano


dormias
e nos intervalos
mal sabias o meu nome.
para uma composição de gelo
uma seiva que desliza é um
estado de lava em alto grau
porque também assume
o seu retorno
insiste na oposição no atrito
de ar e roldana na fala
para o exército de nomes e
não o segredo de calar o que
é inválido
embora fria seja a desistência
no entorno do que não ama.

há um gosto de meses no que
não almoço e os mesmos líquidos
escorrendo sobre o balcão da
sesta
e somente este sono de cansar
minha voz não apaziguar e não
nutrir o que aqui falta acreditar
em eternidade.

(era fácil, sabes, se a culpa ou o vulcão
da palavra vingasse o nosso nascimento
e a morte dos amigos não fosse a atividade
diária do que não nos é diferente.)

domingo, 17 de maio de 2009

Oiço falar

Oiço falar da minha vocação
mendicante, e sorrio. Porque não sei
se tal vocação não é apenas
uma escolha entre riquezas, como Keats
diz ser a poesia.
Desci à rua pensando nisto,
atravessei o jardim, um cão
saltava à minha frente,
louco com as folhas do outono
que principiara, e doiravam
o chão. A música,
digamos assim, a que toda a alma aspira,
quando a alma
aspira a ter do mundo o melhor dele,
corria à minha frente, subia
por certo aos ouvidos de deus
com a ajuda de um cão,
que nem sequer me pertencia.

Eugénio de Andrade. O Sal da Língua (1995).

Esqueletos

lago

a nutrição dos peixes explode
descasca ares
adensa o corpo onda os mares
a nutrição dos peixes, molde
duto
os dados sobre os diamantes
a partir de pedaços de vidro
como se nada nada um absoluto
vertical e exposto nada
esclarecesse ao mundo
as informações nutricionais
sobre os peixes galápogos:
efeitos de um hidrogênio
excessivo.

















súmula

focos de neve sobre
a relva favelada do macarrão detrito
com tomates de espuma,
teu corpo, pai
exumado na data dos meus anos
na ocasião do contorno
círculo nocivo
globo notívago
pelo qual adentro
virgem dos peixes
como pupilas que dançam
na água doce da piscina
falseada. cúpula em transe
véspera do abate do sabor
tirano
violento como deus
aos treze anos.














melanografia

era que me dessem espelho,
fulgor da água
cisterna do corpo
ordem descomposta, bruto rompimento
era que eu precisava de que fosse
rápido
como fome
como roldana em atrito da corda com o líquido
e que o movimento estivesse
sólido
acometido pela vigência do nublado
espaço fonte fome eu repito fome
órgão genital entre sebes, frentes de trabalho na
gravura de pele em acrílico profundo.
era que me fosse desenho.
















Transmissão


Álibi que encosta a crosta da língua
no cerne do pavio,
na gordura espessa da várzea,
no efeito cáustico do globo em brasa
brisa noturna de vespertinas covas.

Olhei vestida de soldado
com quepes de molho,
pura sanitária
e com bastões e estandartes de ouro
reconheci no aspecto homogêneo da arnica
a benfeitoria dos apaches, meus irmãos.

Olhei vestida de álibi a crosta do pavio,
como se houvera sido pedra
não fosse o papel incendiário a que sempre sucumbi
o selo legítimo dos lipomas.


30/11/2006










Inscrição

A ponte de néon sobre o rio
alarga a altura das margens
e sobeja a escritura de um poema
ainda límpido no concreto
de barro
que une a cidade
só bolos (e) rios
avançam à direita do passante
embevecido no olhar montanhoso de quem
investe sílaba a sílaba no rim de gás calcário
de maneira que
os pregos os depois e os inquéritos
encontram paz num depósito gorduroso
doutro corpo
igualmente aterrorizado
então basta.















Carta a Alberto, ainda em 97


Não sei mais o que me dizias acerca
da memória das índias e se falavas
Real
do disco repetitivo do nick cave a tocar
a música absurda sobre a existência de anjos
porque eu também ando a gozar dos fármacos
Alberto
e a mim não parece procedente que viva
tão-só de poesia e de diários inscritos sob
o horror que eufemizavas ao dizer apenas
medo.
É claro que acredito nestes anjos ou em
some kind of path que muito pacientemente
elegemos por atalho e por devoção. Alberto
era necessário que viesses por aqui e me ajudasses
a encontrar outros vocativos para além da úmbria
condição adolescente que – disseste –
consistia em elaborar a voz a ponto
de ela não mais enganar a nada e nem a ninguém
porque, eu sei,( deixaste-me claro desde o início)
que estar vivo no epicentro das flores era também
recusar
prestígio emprego bolsas convites
já que falar no teu nome era incerto
sinônimo de
confessar-me também amedrontado
ambíguo belga & português
mas sobretudo doente. Acho sinceramente
que se pudesses me segredar mais da Experiência do
Enforcado ou da tragédia que acometeu Zohía,
poderíamos aproximar os nossos ascendentes
e caminhar em silêncio pela praia, em sines,
ou aqui mesmo no flamengo. Não consegui
gravar-te a fita prometida, e por isto fica o pedido de desculpas,
com a sugestão de que ouças os afghan whigs porque neles
vejo algo television
que seja um pouco do richard hell no greg dulli. por fim
mando não só os meus, mas também abraços e beijos do gustavo
que, sabes, é comigo um outro a falar de ti por estas bandas,
em que o festejo e as cores primárias sangram
as asas destes pequenos demiurgos sem nenhum
glamour ou descendência européia. O poema
que te fiz pus no lixo
junto ao mar ao mito e à minha morte
jacente noutra centrifugação da noite
para acordar fruta horto sorte e
só enfim encenar o último gesto (no coliseu de lisboa)
acompanhado
da horda de mortos que te esperavam
com a garantia & o cumprimento
então de uma overdose de
Beleza.


Barra Mansa, 17 de abril de 2006
(véspera e profecia)












Moonshiner

Dois dos meus filhos estão
suspensos através de
um buquê de escorpiões -
espera na intenção de
drenar a lactose
junto do córtex e da nata
alegórica dos seios.
Aos domingos
dois dos meus filhos
fibrilam um acometimento,
na falta dos desastres.
A cozinha
os pêlos
a casa
toda é tomada por esse ar
de excêntricos odores:
o tom é ameixa,
o cheiro é clinica.



















Dezembro

Devocional a lavagem dos pés
enquanto os ônibus desmontam a chuva
e os afogamentos na praça saens peña
desde sexta-feira, dia em que me deram
de beber o ozônio que caía do teu cabelo
e escorria uma língua transparente até
a saída do metrô inerte da cidade da água
como acidente.
Sequer alguém para ver ou ouvir a química
dos transportes em marcha lenta para
movimento de subúrbio acabando & a minha voz
perder. Molhar desde muito para mais longe contra
a devoção pelo espaço ser um cotovelo se
armando
de as senhoras produzirem náusea nos rapazes
apressados no lastro de perfume curtido.
Frêmito de temporal com vista para a esquerda
na pressa das professoras e motoristas em ordenha,
cinza de adubo para asfalto e todos os 415 fechados
em sua órbita para nunca mais descer a conde de bonfim
e caminhar com livros inúteis, roupa branca suja de lama
ou panetones amassados nas sacolas de plástico que a
intensidade da natureza resolveu dinamitar.













Incisão e álcool para Chan Marshall ou tradução livre para moon pix


Quando as crianças não estavam brincando
e não havia uma luz vermelha na sala de ser
o que imperavam eram os escrúpulos sobre
a mentira. Mas agora eu achei o que as cegava
para acreditar no significado metal
de que o coração é uma cápsula depositária
de bandeiras, acenos e estrelas distantes da
memória. Sim, trata-se de um zoológico triste,
de um aparelho preciso a medir gestos cirúrgicos e
mostras contaminadas de vinho barato e sangue
seco sob as cordas do violão
presente
datado de janeiro de 1988 com a finalidade
paterna e alcoólica de descobrir o significado da incidência
infantil de todos os pesadelos.






















Enorme o projétil que determinou
a permanência na água e o
resguardo no sal para as
olheiras do afogado. Houve luminosidade
houve fadiga e
debaixo do mar eu via o lugar vazio
e irreparável da terra, como quando
nasceu um planeta periférico de ondinas
enxertadas para a inútil crueldade da análise
desde muito, sobre décadas
no rizoma das raízes aquáticas
que transformaram em pedra
o meu leite de veneno.




















De nunca garantir a casa
foi o elo para a assinatura
inexistente nos livros de Ofício.
Também sacolas de supermercado
rasgando na praça em meio a
todos os dias de domingo
com a sorte dos avisos, ultimatos
uma seqüência de respostas erradas
para bemóis muito antigos.
Ou mesmo que o açude em mim vergasse
não cingiria o lenço do noivado não
dançaria no mar o pano dos berços:
chegaria de longe um corpo a fantasma,
bólide entre pirata e o desejado na voz castrada
para garantir em mim pérolas da terra.
Que fosse música de subúrbio.

Rio para professoras II

Para a Fernanda Pequeno


E levanto a voz em tom ameaçador
de desorganizar vidas supondo que
o calor atenue o ímpeto das desmedidas
para um sinal sonoro de escola superar
a fala
enquanto saio correndo pelo entorno da baía
a vergar o corpo de cal, suor e chuva
porque também chove e porque também os olhos
são graves de tarefas, plenos de ataques a crediários,
encostas, ementas, trens e teorias.
No largo da carioca o almoço é um enxame sem favos;
a rapidez é desonesta feito a bondade infinita das dicas para
cursos preparatórios de língua portuguesa e mandarim. Não falar
de si e da incompreensão do suicídio de ian curtis ou dever chorar
o intervalo da tarde somente minutos antes da plenitude dos remédios
atravessando em andor para tantas eras de raridade amparo
provimento, que dormir em vidros de coletivo parece conforto mítico.
E se não bastasse a fé de percorrer três cidades durante um dia, eu
diria que o afago inexiste nas trincheiras e mais: há todos os outros dias
que não segunda-feira
de pé quatro e vinte e cinco da manhã
em cozinha a demandar reparos de eletricidade
e encanamento inaugurando a língua com fervor
e doçura de cafeína preparada então para
desvirginar o primeiro metrô do dia
num vagão só para mulheres ferozes
de cansaço já nas primeiras horas matutinas.
E a pavuna me receberá resplandecente, no cheiro
de fritura e creolina em desajuste
com o volume e o fulgor das frutas
irrompendo o mundo para apaziguar
as dores órfãs e domésticas dos meus pés
irreparáveis e contínuos para asfalto e infantaria.
Voltar significava acúmulo, pétala soltando
a condição de rio em nome de uma voz alterada
grave e enorme como a poeira de quem aguarda
transporte alternativo na linha do trem nos centros
das cidades da baixada. E se volto à condição de
aprender, é grande o impedimento de falar para um
homem e para a disputa cruel das crianças: posso dar
o peito do poema a elas e esperar que sejam
nutridas pela falsidade insustentável de outros
desconfortos, mas que tragam a mim os alfinetes
das insígnias que forjarão a narrativa de suas
dramáticas tragédias encenadas no dispositivo
insólito do que é real. Era um sonho saber
o que fazer disso,
saber como cruzar histórias díspares e iguais
sem corromper o medo ou sobrepujar a ética
mas parece que ultimamente pouco
importa
o quanto sabotamos as próprias guerras
e o que fazemos solitários depois da
trigésima gestação de risco. porque os
pais chegam abruptos e também eu
assino termos de condenação e julgamento
prometendo, no que resta para o mundo,
não mais interceder no que é humano e
esquecer por definitivo os desdobramentos
dos rios das palavras e do amor sobre a terra.

sábado, 16 de maio de 2009

desenha com a ponta dos teus dedos
as fronteiras exactas do meu rosto
as rugas os sinais a cicatriz que ficou da infância
o lento sulco das lâminas onde no peito
se enterra o mistério do amor

e diz-me
o que de mim amaste noutros corpos
noutras camas noutra pele

prometo que não choro mas repete
as palavras um dia minhas que sem querer
misturaste nas tuas e levaste
com as chaves de casa e os documentos do carro
- e largaste sobre a mesa com o copo de gin a meio
na primeira madrugada em que me esqueceste

Alice Vieira

acidente

como abrir uma fenda radiante
na terra
e vazar sem água o acúmulo
dá em filetes o ladrilho
com sorte e banho e pêlos
ao chão.
como escolher entre os nomes
o que reedita a ova de amar
sem galhos e horas perdidas;
comum para um centro fácil
e imenso para chegar aqui
sem a ogiva do meu filho.